terça-feira, 19 de maio de 2009

Lugar de ser feliz não é supermercado

O dia é quente. Do asfalto sobe um vapor denso que parece sólido. Parado na esquina ele acompanha o movimento com os olhos. Carros, pessoas, buzinas, policiais, ônibus, pizzas e auto-falantes... cotidiano puro e cristalino. Ele se sente entediado... não sabe bem por que esse vazio o consome... decide então se movimentar... caminha por alamedas, ruas tortuosas, passeios públicos.... casas caindo na calçada, uma mansão, uma visão, outra vida, observação... cachorros, postes, uma aglomeração... semáforo, esquinas, faixa de pedestres, vento quente e uma divagação... fim da calçada... chega na beira do rio... senta em uma pedra, a mais alta que ele consegue encontrar. Olha o horizonte: um pássaro, um lixo que bóia, uma vela, margem e correnteza, uma fortaleza. Por uns minutos esquece da confusão se perdendo no emaranhado de sua própria memória. Lembra do tempo em que as coisas eram feitas para durar... da época em que tudo parecia ser mais simples, menos tumulto, menos agressão, menos excesso. Então subitamente acordado da viagem mental, volta a encarar a realidade suja e abafada da quarta-feira de verão na cidade. Inicia uma busca, uma caçada pela culpa dentro de si mesmo. Onde no caminho teria ele perdido a trilha que leva à felicidade? Por mais longa que fosse a conexão de seus pensamentos não conseguia encontrar coisa alguma que fizesse sentido. Ele tinha um bom emprego, dinheiro não faltava, tinha uma família, carinho, atenção, admiração, sucesso, respeito e acima de tudo vida... sim... por mais esvaziado que estivesse sabia estar vivo e isso representava toda a esperança que nutria nesse momento. Quantos não dariam tudo para ser ele? Quantos não tinham uma inveja visceral de sua condição? Não, não, não... estaria ficando louco? O que seria então a loucura? Rejeitava completamente a possibilidade de que naquele dia, naquele momento, houvesse uma saída para sua agonia... tinha lutado por toda sua vida para alcançar status... para ascender, subir, atingir o ápice... e agora o alpinismo social tinha feito dele uma marionete... sim... sim... sim... alpinismo social que tirou o oxigênio de sua alma como ocorre com os montanhistas nas grandes altitudes... todos os seus atos regidos por uma demoníaca ambição alimentavam seu ceticismo frente à metafísica... sua descrença no ser humano... sua ausência de valores... então de repente ele pára... fica imóvel... nem as idéias passam... olha no relógio cabisbaixo, é hora de ir ao supermercado... hora de voltar a ser um ser qualquer... mas ele não tem vontade... preferia continuar indiferente, mas dirige seu carro pelas ruas movido pela energia da inércia... de novo passa por avenidas, esquinas, futebol, telenovela na vitrine, pessoas apressadas, pessoas exageradas... chegando no templo do consumo ele pega um carrinho e inicia a jornada pela terra das marcas... primeiro corredor: queijo, presunto, uma fila, pão, salsichas e calabresa... segunda corredor: massa, queijo ralado, molho de tomate, milho, ervilha, uma lata cai no chão, aspargos (ele adora aspargos)... terceiro corredor: suco, refrigerantes, cervejas e uma garrafa de vodca... quarto corredor: escova de dente, pasta de dente, escolhe o desodorante, o shampoo está acabando, fio dental, rolo de papel higiênico... se sente cansado... chateado... agoniado... caminha até a fruteira e compra ovos, alface, tomate, cebola, batata, couve-flor... queria rabanete, mas acaba levando quiabo... chegando no açougue escolhe o bife, o frango, pede guisado, espera olhando para a parede descascada... queria tanto saber voar, saber separar o corpo da alma para levitar por campos de flores amarelas e vermelhas na infinitude de seu paraíso pessoal... lentamente se arrasta até o caixa... já não se sente tão mal, agora está pior... seus olhos piscam freneticamente, sua boca se contrai espontaneamente... ele pode sentir a pressão da tensão que quase arrebenta seus músculos rígidos... em sua cabeça uma dor... em sua testa uma tonelada de preocupações... a última compra... passa pelo caixa que diz o valor... tira seu cartão de crédito do bolso com as mãos trêmulas e estende para o atendente... assina o comprovante, guarda a nota... vai até o carro... abre o porta-malas... joga as sacolas... um fluxo de energia vindo do umbigo sobe até os cabelos... ele bate a porta... esmurra o volante... sente sua apatia se transformar em raiva... liga o carro, sai da garagem e olha o relógio... é hora de buscar a mulher e os filhos... é hora de ser o bom marido novamente... de representar o papel mais conhecido de sua pífia vida... dobra uma esquina... sinal vermelho... ele pára... ele escuta... ele pensa... longe ouve gritos... ouve uma buzina... o sinal abriu e ele não viu.... arranca, corre, acelera... quer atingir a velocidade de escape... sim... velocidade de escape... em sua mente essa última palavra brilha intensamente... como se acendesse uma luz na escuridão de uma caverna: ESCAPE! E então ele vira à direita... e outra direita... está na estrada... se distanciando... se distanciando... passa uma hora e ele continua dirigindo... o celular toca... ele olha... é sua esposa... num movimento arremessa o aparelho pela janela... se sente mais leve... mais calmo... abre os olhos... levanta a cabeça... estufa o peito... se sente em controle... expandindo... crescendo... na beira da estrada um menino sentado... ele pára... quer fazer algo por alguém... abre o porta-malas... tira as compras e deixa do lado do garoto... entra no carro correndo e rindo... um riso histérico lisérgico... uma leveza transcendental... dirige mais um pouco... encosta o carro na beira da lagoa... coloca o ponto morto ... sai do carro e empurra, empurra, empurra... assiste o carro afundando lentamente... lentamente... lentamente... e ri... ri tão alto que cansa... o sol está se pondo... pela primeira vez nos últimos tempos está alegre... tranqüilo... quieto... completo... caminha sem direção... lembra do gato de Alice: tanto faz o caminho para quem não sabe aonde quer chegar... uma última risada... um último suspiro... e ele entra noite adentro destemido... indo para algum lugar onde se possa ser feliz...(o que quer que isso signifique)...


Escrito em Janeiro de 2005 - reencontrado após anos perdido

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